Há situações que nos fazem refletir o quão cultural é o machismo em nossa sociedade. Uma simples viagem de carro, conduzida por uma mulher, apresenta o descaso e mal tratamento com as mulheres atípicas aos olhos da sociedade.
Letícia é uma mulher preta do interior do município de Cachoeiro de Itapemirim-ES, comunidade Pedra do Itabira, a exatos 9 km do centro da cidade. Nascera em uma sociedade racista e machista, que apesar das dores sentidas na pele, jamais desistiu de suas metas e de seus objetivos.
Desde a sua infância desejava ser professora, independente da disciplina, via a profissão como sagrada, bela e magnífica. Mal sabia ela dos desafios que viriam a combater.
Quando criança, tímida, introvertida, desafiada a encarar a sociedade crítica, maldosa e impiedosa, até mesmo com uma mocinha, sobreviver era sua única meta. E para isso foi preciso encarar seus maiores medos.
Quando adulta, apesar de já ter vivido muitas situações, a insegurança ainda era presente em sua vida, pois a sociedade permanecia cruel como sempre foi, o que atingia suas escolhas e decisões.
Apesar de seu desejo constante de lecionar, após sua graduação, a dúvida a abateu, e ela, por 3 anos, não atuou na área. Até que em um momento a oportunidade chegou e, enfim, estava realizando o seu sonho.
Encarar a sala de aula e seus alunos era sempre com um frio na barriga. Será que eles sabem mais que eu? Será que sou uma boa professora? O que pensam sobre mim? Indagações que a abatiam constantemente, mas, aos poucos, aprendeu que todos podem duvidar de sua capacidade, a opinião do outro não é nada, mas ela jamais poderia desacreditar de si.
Seu primeiro trabalho como docente não foi fácil. Seu trajeto era para um município vizinho, aproximadamente 29 km de distância. Mas ainda lhe restava o medo de dirigir, penso que já nasceu com ele, e a sociedade não a ajudava a superar, inferiorizando-a e desacreditando sempre mais.
Acordar cedo nunca foi o problema. E assim ela fez por 3 anos, acordando às 4 horas da manhã, sendo levada até o ponto mais próxima por seu irmão e de lá seguia para o serviço, embarcando em dois ônibus: ida e volta.
O desejo de dirigir sempre a seguia. A partir de amanhã vou treinar a direção, mas o treino nunca chegava, e a procrastinação sempre estava presente em sua vida. Pagou uma autoescola, frequentou todas as aulas teóricas, mas desistiu. Dizia ser culpa de vídeos que o instrutor ou, mas no fundo sabia que era medo e falta de coragem para encarar suas tribulações.
Por vontade divina, uma escola mais próxima chegou em sua vida, enchia a boca e dizia “aqui eu posso ficar tranquila, se eu perder o ônibus posso ir a pé pra casa, pois sei o caminho”. E novamente foi tentada a tirar a habilitação.
Matriculou-se novamente em uma autoescola, ou direto na avaliação teórica, o desafio agora era a prática. Seu instrutor lhe ava tanta confiança e crédito que, na primeira aula, saiu dirigindo pela cidade. Foi um dos melhores dias de sua vida. Na avaliação prática reprovou em duas, perdendo novamente sua confiança, quase desistindo. Decidiu realizar o que, segundo ela, seria a última tentativa, sem qualquer esperança de ar realizou a prova.
Em um dia com promessa de chuva, quando seu maior medo era realizar a prova chovendo, sozinha, pois neste dia não havia ninguém para acompanhá-la, contou apenas com a força de seu instrutor. O que foi suficiente. Tudo que poderia acontecer, ocorreu. Choveu, foi a segunda a pegar a direção, após sua colega subir na calçada em ladeira, teve que tirar o carro e seguir viagem.
Mas o improvável aconteceu, no dia menos provável, realizou a prova sem ansiedade e medo de reprovar, já que não estava ligando se asse ou não, foi o dia que foi aprovada. Hilário, né?
Mas receber a carta não significa perder o medo. O desafio seria no seu cotidiano. Até que foi preciso pegar aulas à noite e com essa mudança foi obrigada a dirigir. Saindo cedo de casa e preferindo sair mais tarde do trabalho foram algumas ações para evitar o trânsito da cidade.
Por mais que escute que o trânsito seja ruim, e não podendo discordar, visualiza que há situações possíveis de serem evitadas, se em prática houvesse empatia e respeito com o próximo.
Em um determinado dia seguindo para seu novo trabalho, andando pelas ruas da cidade, imprensadas e lotadas de veículos estacionados, depara-se com duas situações. Ao adentrar em uma rua próximo a uma escola, logo no início, foi preciso retornar por duas vezes para dar agem a outros motoristas.
Pensando o caminho está livre, seguiu dirigindo, deparando-se com um carro. Desta vez, a agem estava mais fácil para o outro motorista, que permaneceu imóvel, não retornou nem um milímetro, forçando-a a retornar com o carro até o momento que bateu seu retrovisor, despedaçando-o.
Neste exato momento, Letícia visualiza outro homem se aproximando, oferecendo ajuda, que, após tentar dialogar com o motorista, que se recusou a dar agem, o bom cidadão a ajudou a entrar e sair de uma garagem para resolver a situação.
Por um instante, ela pensou estar errada, chegando a perguntar se era contramão a rua que ava, “mas você está na mão certa, essas ruas são imprensadas e os motoristas sem empatia” foram as palavras do anjo que lhe ajudou, este que lhe ensinou um outro caminho, mais seguro, que se mostrou preocupado. Pela primeira vez, Letícia se mostrou estável, não chorou, nem se desesperou, apenas seguiu o seu destino.
Finalizo com um diálogo que ocorreu neste mesmo dia. Ao chegar em casa, Letícia relatou sobre o seu dia para sua mãe, que a questionou. “Será que se fosse outro homem o motorista teria desafiado? Teria peito para encarar?”
Letícia vive a realidade de muitas mulheres, pois uma das primeiras profissões a dar espaço para uma mulher negra, do interior, foi a docência. Ser professora era a oportunidade de mudar de vida, mas também mudar a vida de outros. E ainda é até hoje. Como professora, ela construiu a sua identidade e contribui para que outros entendam que a mulher não é um perigo constante.

👉 Receba as notícias mais importantes do dia direto no seu WhatsApp!
Clique aqui para entrar no grupo agora mesmo
✅